sexta-feira, 4 de julho de 2008

A história do câmbio da bicicleta

.
Contar a história do câmbio de bicicleta e relação de marchas sem citar Leonardo da Vinci é tratar com pouco respeito este grande inventor. Isto porque foi Leonardo que, enquanto estudava o Teorema das Composições de Forças, descobriu a solução para o problema do equilíbrio de um corpo em planos inclinados e não inclinados, concebendo então a “ideia” de uma máquina não muito diferente das bicicletas inventadas nos tempos relativamente recentes.


Antes de entrar na história dos câmbios propriamente dita, vamos rapidamente examinar a função e a utilidade deste dispositivo. Ele permite que o ciclista altere a relação entre pinhão e coroa baseado na dificuldade de um percurso, mudando de marcha enquanto pedala. Isto é, o ciclista é capaz de alterar a relação entre o número de pedaladas, o esforço necessário e a distância percorrida em metros.( veja a tabela ) Este é o motivo pelo qual uma série de engrenagens com diferentes tamanhos é montada na roda traseira e conectada às coroas dianteiras -pode haver mais de uma - por uma corrente.

A história deste dispositivo tão popular pode, então, ser contada a partir da invenção de Leonardo da Vinci, embora tenha sido esquecida durante séculos. Ele foi a primeira pessoa a inventar a relação de marchas ou “câmbio”, exatamente em função da desigualdade de dentes entre as engrenagens. Olhando com admiração seus desenhos, constata-se exatamente isso: a engrenagem dianteira - coroa - é maior que a traseira - pinhão - e por sabermos que entres outras coisas foi arquiteto e engenheiro, temos a certeza de que esse detalhe não fez somente parte desses desenhos. Reprodução da bicicleta concebida por Leonardo da Vinci

Foi apenas com a proximidade do fim do século 18 que as pessoas começaram a pensar em encontrar formas que viessem ajudar na própria locomoção. O primeiro engenho de que se tem notícia é o ” celerífero “, uma ponte de madeira entre duas rodas, sem pedais nem corrente, onde uma pessoa, sentada, dava passadas de um lado e do outro, alternadamente. Os “celeríferos” se transformaram em seguida nos biciclos (velocípedes com duas rodas), engenhos já com pedais, que se caracterizaram pelo fato de terem a roda dianteira com um diâmetro considerável e a traseira, reduzido. Como os pedais eram presos no eixo da roda dianteira, uma pedalada correspondia a uma volta. Então, quanto maior fosse a roda, maior seria a distância percorrida em cada pedalada; surgiu aí,concretamente,a primeira relação de marchas.

O homem havia inventado a bicicleta e já começava a estudar maneiras de adaptá-la às suas exigências. Os pedais dos velocípedes já não eram mais montados no eixo da roda e agora a relação era conseguida graças a duas rodas dentadas e a uma corrente sendo que uma destas rodas se distinguia por ter um número menor de dentes. Era o ano de 1893 e esta descrição corresponde inteiramente ao dispositivo montado no Biciclo Crypto, descrito em “Bicycle avec multiplication d’engrenages”. Foto de dispositivo idêntico - mudança Vittória Margherita - montado num Biciclo Kangaroo.

Entretanto, é somente no início do século XX, que se começa a ouvir falar em mudança de marchas em bicicleta, no momento em que aparece a roda livre. Esta invenção, além de facilitar o aparecimento dos dispositivos capazes de modificar as relações de marcha, criou vantagens, tanto no campo técnico quanto médico, pelo fato de, em se poder parar momentaneamente de pedalar, permitir aos músculos eliminarem toxinas e se reoxigenarem. Foi a partir deste momento que os atletas “descobriram” a bicicleta, o gosto pelas competições e o prazer das vitórias. Acostumados que estavam a andar por estradas difíceis e poeirentas, perceberam logo que este engenho iria dar-lhes uma ajuda extraordinária.

Os “criadores” e os mecânicos debruçaram-se sobre os problemas com verdadeira obstinação; tanto assim, que em 1914, construíram um “câmbio” formado por dois pinhões, montados cada um de um lado de um cubo, que era para evitar a perda de tempo na centragem da roda. Na figura podemos ver que a traseiras das bicicletas tinham dispositivos móveis que giravam, ou para baixo ou para cima, dependendo da posição da roda; eram fabricados em vários tamanhos e colocados antes de cada corrida, conforme os pinhões escolhidos para atender às necessidades dos percursos.
Variando a posição deste dispositivo - para cima ou para baixo - a roda ficava centrada e a corrente perfeitamente esticada. Entretanto, essa roda tinha de ser solta, invertida e recolocada quando a “relação” tivesse de ser mudada. Era comum ver-se campeões saltar da bicicleta, realizar estas operações com grande nervosismo e sentar novamente no selim para tentarem recuperar o tempo perdido nestas paradas.

O próximo passo, seria o uso de um pinhão de três engrenagens, que permitia ao atleta mudar a relação afrouxando a borboleta e trocando a corrente nos pinhões com a mão - incluem-se nesse processo os modelos de bicicletas com freio contra /pedal. O problema, entretanto, não estava resolvido pois o corredor ao fazer muita força durante a corrida, descentrava a roda e tinha de saltar da bicicleta somente para ajustá-la.

O inconveniente de ter de parar para ajustar a roda, porém, não demorou muito tempo. Lá por volta de 1920, Alfredo Binda usava a mudança, ainda manual, porém, afrouxar a roda não era mais necessário; a corrente era ajustada através de um esticador com roldana, preso no quadro da bicicleta à altura do movimento central e com uma alavanca pela qual se realizava esta operação.

Entre 1924 e 1925 o ciclismo italiano dava as cartas; Girardenco e Botttechia puxavam a fila com suas modernas bicicletas e alcançavam os objetivos cobiçados. Uma das razões desse sucesso foi a ajuda das fábricas de bicicletas que tudo fizeram para ajudá-los a vencerem suas batalhas. Um nome surgiu logo após e rapidamente ficou famoso: bicicletas Ancora. Essa fama veio do uso pela fábrica, da novidade em matéria de câmbio para bicicletas: câmbio Victoria. Este câmbio se caracterizava pela presença de um esticador com mola e trocava a corrente nos pinhões através de um dispositivo de duas aletas, fixado no lado de cima do tubo traseiro horizontal, um pouco à frente do pinhão. A troca de marchas acontecia pelo girar desse tirante para um lado ou para o outro, bastando apenas pedalar para trás. Com o uso da mola no esticador, a corrente ficava sempre ajustada independentemente do pinhão em uso.
Este cambio, batizado com o nome de “Vittória Margherita”, já permitia o uso de um pinhão de quatro velocidades e a partir dele os melhoramentos foram rapidamente acontecendo.

A propósito deste tipo de câmbio, conta a história do ciclismo, que Binda, em 1927, na contra mão da tecnologia, foi campeão do mundo em Adenau com uma bicicleta Legnano equipada com roda traseira de dois pinhões e sem câmbio ( fig). Qual teria sido a razão de ter ele recusado usar a mudança Vittoria, já tão famosa no mundo ciclístico? Se avaliarmos pelo plano técnico, podemos deduzir que a bicicleta Legnano utilizada nesta tão prestigiosa competição, empregava ainda um sistema de freios contra pedal. Ora! para poder usar o famoso câmbio, Binda teria de recorrer a outro tipo de frenagem e utilizar uma outra bicicleta para não trocar de marcha e freiar ao mesmo tempo… e deixar escapar a vitória. Por outro lado, o câmbio Vittoria Margherita foi usado em 1938 por Gino Bartali, que que se afirmava então na Tour de France. Pode-se também questionar a razão do grande campeão tê-lo feito, uma vez que já havia sido lançado um outro modelo muito mais moderno, de nome Cervino, que permitia já a troca de marchas com a pedalada para a frente.

A segunda guerra mundial veio decretar um intervalo nas atividades ciclísticas, tanto na parte esportiva quanto na tecnológica; entretanto, logo após o fim do conflito, o rumo das atividades foi retomado e as novidades começaram a surgir. Os câmbios de bicicleta deram um enorme salto; o nome que, dali para a frente, passaria a ser sinônimo de desenvolvimento tecnológico, surgiu no meio ciclístico: Campagnolo.

A Sociedade Campagnolo ou mais precisamente Sr. Tulio, seu proprietário, inventou um mecanismo revolucionário para troca das marchas de bicicleta. o câmbio completo - traseiro e dianteiro. Esse novo mecanismo permitiu dobrar o número possível de relações de marchas.
A parte traseira era composta de duas alavancas: uma - atuava no aperto e desaperto (bloqueio) - montada sobre o eixo da roda; outra, na haste traseira oblíqua com um prolongamento em sua extremidade, que fazia a troca da corrente nos pinhões.
Para que a roda ficasse sempre no centro as extremidades traseiras - gancheiras - eram dotadas de dentes. O cubo foi fabricado de maneira que, uma vez acionada a primeira alavanca (afrouxamento da roda), a segunda se deslocava e a corrente pulava para o pinhão desejado, sempre pedalando para trás. O eixo que se encaixava nos dentes da gancheira dentada era levado para a posição ideal através do peso do ciclista e o acionamento da alavanca de bloqueio encerrava essa troca de marchas.
Este câmbio passou a ser utilizado por todos os fabricantes de bicicletas; Gino Bartali e Fausto Coppi utilizaram-no na vitoriosa campanha do Tour de France de 1948.

O desenvolvimento e aperfeiçoamento deste dispostivo ainda continuou por algum tempo. A próxima etapa seria a substituição das duas alavancas por uma só, com dupla função, que afrouxava a roda durante a primeira fase e se transformava em uma só peça para a troca da corrente. A força necessária para este movimento era regulada através de uma mola tal qual uma embreagem. A operação terminava com o aperto da roda através da alavanca citada no início. Serse Coppi serviu-se deste câmbio na Paris-Roubaix de 1949 mas, apesar disso, não foi um dispositivo muito bem aceito pelos corredores.

Ao mesmo tempo, Ghisallo, uma artesão, ligava seu nome diretamente ao ciclismo, ao introduzir uma modificação no câmbio de duas alavancas. Com as mesmas funções da Campagnolo mas com a alavanca de troca de corrente colocada na parte de baixo da traseira da bicicleta, já permitia essa função pedalando para a frente. Ainda assim, esta modificação não teve grande aceitação pois o afrouxamento da roda para possiblitar a troca de marcha ao mesmo tempo em que se pedalava para a frente, criava problemas no ajuste do eixo com a gancheira dentada, que se fixava muitas vezes em posição inadequada, dependendo do esforço empregado no momento em que se fazia necessária essa troca.

Mas esses problemas de troca de marchas, causados pela ineficácia dos câmbios fabricados até este momento, finalmente terminaram; é inventado um dispositivo, definitivo, capaz de fazer essa troca sem a necessidade do afrouxamento e pedalando para a frente: O câmbio Simplex. Montado na parte de baixo da traseira da bicicleta, tinha o funcionamento semelhante ao dos câmbios atuais. Embora ainda não fosse perfeito tecnicamente, já éra, entretanto, muito confiável.

O surgimento deste sistema abriu as portas às inovações que, de imediato, foram sendo acrescentadas. O próprio câmbio Simplex, logo em seguida, acrescenta uma inovação no deslocamento horizontal da corrente, já sobre uma pinhão de 5 marchas. Esse deslocamento acontece agora graças à tração exercida por uma mini-corrente, acionada por uma alavanca de comando situada no tubo diagonal, local onde até hoje muitas ainda são fixadas.
Essa alavanca, através de um cabo dentro de um conduite, puxa essa pequena corrente presa a um dispositivo móvel onde estão fixadas as roldanas que trazem a corrente para a engrenagem desejada. Entre esse dispositivo móvel e a parte presa na traseira (gancheira), existe uma mola de lâmina semelhante às usadas em tesouras de jardinagem, que se encarrega de levar a corrente para a posição desejada quando a alvanca executa o trabalho inverso.
Fausto Coppi, o “Campionissimo”, nos faz lembrar de Lugano em 1953, quando, usando o câmbio Simplex, conseguiu a camiseta do arco-iris.

Nenhum comentário: